sábado, dezembro 13, 2003

Separar-se de si... (Coisa sobre meus vários Eus...)

"(...)

O jovem pescador estremeceu:
- É verdade o que me dizes? - murmurou.
- É verdade e eu desejava não te haver dito - gritou ela (a bruxa).
e agarrou-se-lhe aos joelhos, chorando.
Mas ele afastou-a, deixou-a de rastos na erva viçosa e, dirigindo-se à crista da montanha, colocou a faca no cinto e começou a descer. E a sua alma, que estava dentro dele, chamou-o e disse-lhe:
- Ai! Eu morei dentro de ti todos estes anos e fui a tua fiel serva. Que mal te fiz eu para me expulsasres de ti?
E o jovem pescador riu:
- Não me fizeste mal nenhum, mas não preciso de ti - respondeu. - O mundo é largo e há ainda o céu e o inferno e essa morarda nebulosa que fica entre os dois. Vai para onde te aprourer, mas não me estorves, que o meu amor chama por mim.
E a sua alma suplicou insistentemente, mas ele não lhe deu atenção, saltando de fraga em fraga, porque seus pés eram seguros como os da cabra-montês; e chegou, por fim, à planície e à costa amarela do mar.
Com membros de bronze e bem talhado como a estátua dum grego, parou na praia, de costas para a lua. E da espuma saíam braços brancos que lhe acenavam e das ondas surgiam formas nebulosas que lhe rendiam homenagem. Diante dele estava a sua sombra, que era o corpo da sua alma, e atrás dele flutuava a lua, no ar cor de mel.

(...)

- Não te demores, pois, e trata de partir.
- E não hei de amar também? - perguntou a alma.
- Vai-te, que não tenho necessidade de ti - gritou o jovem pescador.
E tirou a faca com o cabo de pele de víbora verde, cortou a sombra à roda dos seus pés e ela levantou-se, parou à sua frente e olhou-o; era como se fosse ele próprio. O pescador recuou, meteu a faca no cinto e um sentimento de terror o invadiu.
- Vai-te - murmurou - e que não te veja mais.
- Mas temos de voltar a encontrar-nos - disse-lhe a alma.
Sua voz era baixa e aflautada e os lábios mal se moviam, enquanto falava.
- Como nos encontraremos? - gritou o pescador - Certamente não vais seguir-me às profundezas do mar?
- Uma vez em cada ano, virei a este lugar e chamarei por ti - disse a alma - Pode acontecer que tenhas necessidade de mim.

(...)
"



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