sábado, junho 23, 2007

O inferninho são os outros

A Augusta não sai de moda desde os anos 60, quando, no embalo da Jovem Guarda e do fusca abacate do Tremendão, a moçada descia a rua a 120 por hora. O mais sortido corredor de Sampa é uma divina comédia.Tem o rico paraíso nos Jardins, o purgatório na área da Paulista e o inferninho na sua zona oriental, no sentido de quem despenca, ladeira abaixo, para o centrão, onde todos os caminhos se bifurcam no outrora assombrado vale indígena do Anhangabaú.

É o nosso Red Light District, para lembrar a liberadíssima Amsterdã, só que bem melhorado, amigos. Por uma razão bem simples de entender, à luz dos nossos testosteronizados corações: nossos bosques têm mais flores, digo, mulheres, e as mulheres são infinitamente mais lindas.

Na divina e mutante comédia de uma rua que está sempre em evidência, gracias, as moças das calçadas não estão lá muito satisfeitas no momento. A invasão de jovens modernos, sejam roqueiros com caras de maus ou sensíveis emos –esses moços, pobres moços que choram e borram a maquiagem-, tem atrapalhado o mais antigo dos comércios, as fenícias do sexo, mas nada grave, relaxa, relaxa!

A fauna se completa com o público GLS da boate A Lôca, na mesma geografia faminta do Baixo Augusta, e a turma mais cabeçuda, digamos assim, que parece saída de um filme de Godard e se concentra ali no Charme, boteco da esquina com a Antonio Carlos.

“Ora, os coroas ficam meio envergonhados de parar o carro no meio da zoação da garotada”, me conta a vizinha Carmem, que faz ponto nas imediações da Augusta com Fernando de Albuquerque. “Já pensou o risco que eles correm? Podem até encontrar seus filhos na balada… E, cá entre nós, não é nada bom pegar uma puta na frente dos moleques!”, diverte-se a inimitável mestiça sobre a sua sandália alta de salto transparente –uma tendência fashion do pedaço.

Carmem e a amiga Sthephany, com todos esses pê-agás ai -ela confere se anotei direito no meu esnobe caderninho Moleskine, gente fina-, têm migrado, por volta de uma da madruga, para os arredores da Augusta, maneira de driblar o constrangimento de alguns clientes que preferem não encarar o frufru da rapaziada. O inferno são os outros, diriam os tiozinhos -esse batismo terrível com o qual os mais jovens se dirigem aos coroas de 40, 45 para cima.

A nova onda moderna começou há uns dois anos. Agora as casas noturnas de garotas de programa perderam mesmo espaço para as boates e lugares descolados ou roqueiras como Vegas, Outs, Susy in transe, Saravejo e Inferno, inferno mesmo. “Esse jeitão underground da Augusta, com putas e droga fácil, só em alguns redutos de Nova York”, diz Wagner Muniz, 26, designer que freqüenta a área. “Nova York com precinho de São Paulo, claro”.

Noves fora o fetiche paulistano por Londres e Nova York, a balada da Augusta, 24 horas todos os dias da semana, talvez seja mesmo hoje uma das maiores ferveções urbanas do mundo. O pior para as meninas das calçadas é que elas funcionam como atrações para um público que não vai fazer programas com elas, que não tem cultura da luz vermelha.

Um público que curte as putas na paisagem caótica, para se achar um tanto quanto maldito, mas que não desce às camas quentes dos subsolos dos infernininhos da Augusta ou sobe aos céus dos poleiros dos hotéis Itamar e Savoy –este famoso por sua iluminação esverdeada capaz de fazer qualquer cadavérico canalha um Incrível Hulk.

Ainda bem que por ali flana um certo professor Paulo César Peréio, sempre a ouvir da moçada um “eu te amo, porra”, seu bordão clássico desde o filme quase homônimo com a Sônia Braga… Um Peréio quase imbatível na Sinuca do Pescador, salão deste inocente sítio, e que combate a perda de terreno das profissionais para a invasão amadora da molecada. “Tem que haver maior equilíbrio ecológico, nada contra os veados, mas não custa equilibrar melhor o ambiente, o jogo”, diz ao cronista. E mata a preta em diagonal, raspando de leve a bola inimiga de modo a ensinucar-se no ponto futuro, como na existência dos que jogam pesado.

Como se não bastasse o golpe da moda, a Augusta sabe que a sua sina é sempre esse troca-troca de público, a rua perdeu uma das suas marcas tradicionais: as fachadas de néon, com suas palmeiras, luas, corações piscando, pin-ups em brasa… Com a lei da poluição visual do Kassab, quase tudo foi destruído. Só nos resta cantar, com a Ângela Maria, que já cantou muito na citada rua: “A luz do cabaré… já se apagou em mim/ um tango na vitrola também chegou ao fim…”

Publicado por Xico Sá em No Mínimo
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