segunda-feira, dezembro 15, 2003

Coquetismo?!

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Fortaleceu-se em mim a impressão de que o ofendera, e lamentei isto. (...) Quando não se ouvia mais o passo do seu cavalo, dei a volta à casa, fui para o terraço e fiquei olhando novamente o jardim, e por muito tempo ainda vi e ouvi, em meio à néva orvalhada, em que pairavam os sons noturnos, aquilo que eu queria ver e ouvir.
Ele veio mais uma vez, uma terceira, e o constranimento, proveniente da estranha conversa ocorrida entre nós, desapareceu de todo e não voltou mais. No decorrer do verão, ele vinha visitar-nos duas ou três vezes por semana; acostumei-me a ele tanto que, se tardava, eu começava a sentir o peso de minha vida solitária, zangava-me com ele e achava que se portava mal, abandonando-me. Tratava-me como um jovem amigo de quem se gosta, interrogáva-me, provocava-me à maior franqueza, dava-me conselhos, estimulava, às vezes censurava-me e detinha-me. Mas, apesar de todos os seus esforços para tratar-me como sua igual, eu sentia que, por trás daquilo que eu compreendia nele, ficava todo um mundo ignorado, em que ele não considerava necessário introduzir-me, e isto mais que tudo sustinha em mim o respeito por ele e me atraía. Eu sabia por meio de Kátia e dos vizinhos que, além dos cuidados com a velha mãe, com quem vivia, além da sua propriedade e da tutela sobre nós, ele tinha uns casos seus, relacionados com a sua condição de fidalgo, e que provocavam às vezes situações bem desagradáveis; mas eu nunca pude saber por meio dele como encarava tudo isto, quais eram as suas convicções, projetos, esperanças. Mal eu orientava a conversa para os negócios, ele fazia uma careta, que lhe era peculiar, como que dizendo: "Chega, por favor, o que tem a ver com isto?" - e mudava de assunto. A princípio, ficava ofendida, mas depois me acostumei a tal ponto com isto que nós sempre conversávamos unicamente de assuntos referentes a mim, e eu já considerava isto natural.
A princípio não me agradou, mas depois, pelo contrário, passei a achar agradável a sua completa indiferença e como que desdém pela minha aparência. Nunca me sugeria, por um olhar ou por uma palavra, ser eu bonita, e, pelo contrário, fazia careta e ria se, na sua presença, alguém me chamava de bonitinha. Gostava até de encontrar em mim defeitos de físico e espicaçava-me com eles. Os vestidos de moda e os penteados, com os quais Kátia e a gostava de me enfeitar nos dias solenes, despertavam somente as suas zombarias, que ofendiam a boa Kátia e a princípio, deixavam-me desnorteada. Tendo decidido em seu íntimo que eu agradave ele, Kátia não conseguia de modo elgum compreender coo se podia deixar de apreciar que uma mulher do nosso gosto nos aparecesse sob a aparencia mais favorável. Mas eu logo compreendi o que ele necessitava. Queria acreditar que em mim não havia coquetismo. E, depois que eu compreendi isto, realmente não sobrou em mim nem sombra de coquetismo nos trajes, nos penteados, nos movimentos; e, em compensação, apareceu, cosido a linha branca, o coquetismo da simplicidade, numa época em que eu ainda não podia ser simples. Eu sabia que ele me amava - como uma criança ou como mulher, eu ainda não me interrogava; tinha em alto preço esta amor, e, sentindo que ele me considerava como a melhor das moças no mundo, não podia deixar de desejar que esta mentira permanecesse nele. E, involuntariamente, eu o enganava. Mas enganando-o, eu mesma tornava-me melhor. Sentia o quanto era melhor e mais digno para mim exibir-lhe as melhores partes do meu espírito que os do corpo. Ele atribuia imediatamente o devido valor, parecia-me, aos meus cabelos, às mãos, ao rosto, aos gestos habituais, quaisquer que fossem, bons ou maus, e conhecia-os tão bem que eu nada poderia acrescentar ao meu físico, além de um desejo de enganar. Mas ele não conhecia o meu espírito, porquanto o amava e porque este, na mesma época, crescia e desenvolvia-se: era nisto que eu podia enganá-lo e o enganava. E que leveza eu senti na sua companhia, depois que percebi isto com nitidez! Desapareceram em mim de todo os constrangimentos som motivo, os movimentos freados. Eu sentia que, estando de frente ou de lado, sentada ou em pé, ele me via, quer eu estivesse com os cabelos para cima ou para baixo: conhecia-me toda e, a meu ver, estava contente comigo, como eu era. Penso que se, contrariando os seus hábitos, ele me dissesse de repente, como os demais, que eu tinha um rosto lindo, eu não me alegraria um pouco sequer. Mas, em compensação, que prazer, que clariadde, apareciam-me na alma quando, após alguma palavra minha, e depois me olhar fixamente, ele me dizia, a voz perturbada, à qual procurava infundir um tom brincalhão:
- Sim, sim, você tem algo. è uma moça simpática, devo dizer-lhe.

(...)

(...) É ridículo dizê-lo, mas até os dezessete anos eu vivera em meio a essa gente, mais estranha a ela que em relação às pessoas que eu jamais conhecera; nunca pensara que, tal como eu, ele tinham amores, desejos, comiseração. O nosso jardim, os nossos bosques, os nossos campos, que eu conhecia desde tanto tempo, tornaram-se de repente novos e belos para mim, Não era em vão que ele dizia existir na vida apenas um felicidade indiscutível: viver para outrem. Parecia-me então estranho, eu não compreendia isto; mas essa convicção, mais do que a idéia, já me penetrava o coração. Ele desvendou para mim toda um existência de alegrias no presente, sem alterar nada em minha viad, sem acrescentar nada, além de si mesmo, a cada impressão. À minha volta, tudo eta quieto, como o fora desde a minha infância, mas bastava que ele chegasse, e tudo passava a falar, todas as coisas pediam entrada em minh'alma, uma de cada vez, e enchiam-na de felicidade.
Nesse verão, eu subia freqüentemente ai meu quarto, deitava-me no leito, e apossava-se de mim, em lugar da anterior angústia primaveril dos desejos e esperanças no futuro, um sobresalto de felicidade no presente. Não conseguia adormecer, levantava-me, sentava-me na cama de Kátia e dizia-lhe ser inteiramente feliz, o que, segundo lembro agora, era de todo desnecessãrio dizer-lhe: ela mesma podia vê-lo. (...) e eu ainda passava muito tempo examinando aquilo que me fazia tão feliz. Às vezes, levantava-me para uma oração, outras vezes rezava com as minhas próprias palavras, a fim de agradecer a Deus toda a felicidade que concedera.
O quarto pequeno estava quieto; somente Kátia respirava conolente e regularmente, o relógio tiquetaqueava ao seu lado, eu me virava e murmurava, ou persignava-me e beijava a cruz que me pendia do pescoço. A porta estava fechada, havia persianas nas janelas, alguma mosca ou mosquito balançavam-se e zuniam no mesmo lugar. E eu tinha vontade de nunca sair desse quartinho, não queria que chegasse a manhã, e se dissipasse essa atmosfera interior, que me rodeava. Tinha a impressão de que os meus sonhos, pensamentos e rezas eram seres vivos, que viviam comigo ali na treva, que esvoaçavam junto ao meu leito, que pairavam sobre mim. E cada pensamento era um pensamento dele, cada sentimento ambém. Então ainda não sabia que era amor, pensava que isto podia ser apenas assim, que este sentimento nos era dado gratuitamente.

(...)

- Um homem pode dizer que ele ama, uma mulher não - afirmou ela.
- E eu tenoa impressão de que também o homem não deve e não pode dizer que ama - replicou ele.
- Por quê? - perguntei.
- Porque isto será sempre uma mentira. Que novidade há em um homem estar amando? É como se, apenas ele diga isto, algo bata com estrépito: bumba - ele ama. É como se, apenas ele pronuncie essa palavra, deva acontecer algo fora do comum, e canhões sem sonta disparem no mesmo instante, em nome de nobre ideais. Parece-me - continuou ele - que hoemns que proferem solenemente estas pelavras: "Eu a amo" - enganam a si mesmos ou, o que é pior ainda, enganam a outrem.
- Mas como vai saber uma mulher que ela é amada, se não lhe disserem isto? - perguntou Kátia.
- Isto eu não sei - respondeu ele - cada um tem as suas próprias pelavras. E, se existe sentimento, este há de se expressar. Quando leio romances, imagino sempre o rosto preocupado que devem ter o tenente Striélski ou Alfredo, ao dize: "Amo-te, Leonor!" - e ao pesar que deverá ocorrer de súbito algum fato incomum; e nada acontece nem com ela cem com ele: são os mesmos olhos, o mesmo nariz, é tudo o mesmo.

(...)

(...) E vieram-me um pensamento e uma esperança estranhos, que me acalmaram. Decidi jejuar a partir de então, comungar no dia dos meus anos e, nesse mesmo dia, tornar-me sua noiva.
Para quê? Por quê? Como isto devia ocorrer? Eu não sabia, mas, desde aquele instante, acreditava e sabia que assim ia acontecer. QUando voltei ao meu quarto, o dia já clareava de todo e as pessoas de casa começavam a levantar-se.

(...)

A semana toda ele nenhuma vez viera a nossa casa, e eu não só me surpeendia, não me alarmava e não me zangava com ele, mas, pelo contrário, estava contente porque ele não vinha, e esperava-o apenas para o dia dos meus anos. (...)

(...)

Comunguei, conforme planejava, no dia dos meus anos. Tinha no peito uma felicidade tão completa, quando voltava nesse dia da igreja, que temi a vida, temi toda impressão, tudo o que pudesse estorvar essa felicidade. Mas apenas descemos da liniéika, à entrada da casa ressoou sobre a ponte o cabriolé tão conhecido, e eu vi Sierguiéi Mikháilitch. Deu-me os parabéns, e entramos juntos para a sala de visitas. Jamais, desde que eu o conhecia, estivera tão tranqüila e independente com o ele, como nessa manhã. Sentia em mim todo um mundo novo, que ele não compreendia, um mundo ais elevado que ele. (...)

(...) Durante o jantar, disse que viera dar-me os parabéns e também despedir-se, porque ia no dia seguinte para Moscou. Dizendo isto, olhos para Kátia; mas depois lançou-me um olhar de relance, e eu notei como ele temia perceber uma perturbação em meu rosto. Mas não me espantei, não me alarmei, não lhe perguntei sequer se era por muito tempo. (...)

Ele queria partir logo depois do jantar, mas Kátia, que se cansara na missa, fora deitar-se um pouco, e ele teve que esperar que ela acordasse, a fim de se despedir. Havia muito sol no chão e, por isto, saímos para o terraço. Apenas nos sentamos, comecei a dizer com a máxima tranqüilidade aquilo que devia decidir a sorte do meu amor. E não comecei a dizê-lo mais cedo, nem mais tarde, mas no momento exato em que nos sentamos, e quando ainda não se dissera nada, e ainda não havia nenhum tom, nenhuma característica na conversa, que pudesse estorvar aquilo que eu queria dizer. Eu mesma não compreendo de onde me surgiam tamanha tranqüilidade, espírito decidido e precisão nas expressões. Como se não eu, mas algo independente da minha vontade, falasse em mim. Ele estava sentado na minha frente, os cotovelos sobre a balaustrada, e, tendo puxado para si um ramo de lilás, arrancava as folhas deste. Quando comecei a falar, ele soltou o ramo e apoiou a cabeça no braço. Isto podia ser a posição de um homem absolutamente tranqüilo ou muito perturbado.
- Para que viaja? - perguntei significativa e pausadamente, olhando-o bem de frente.
Tardou em responder.
- Negócios! - proferiu depois, baixando os olhos.
Compreendi como lhe era difícil mentir para mim, em resposta a uma pergunta feita com tanta sinceridade.
- Ouça - disse eu - você sabe o que o dia de hoje significa para mom. Ele é muito importante po inúmeras razões. Se lhe faço esta pergunta, não é para demonstrar simpatia (sabe muito bem que me acostumei a você, que eu gosto de você), mas simplesmente porque preciso saber. Para que viaja?
- É muito difícil para mim dizer a você a veradedira razão da minha viagem - disse ele. - Esta semana, eu pensei muito em você e em mim, e dicidi que preciso partir daqui. Você compreende porque o faço, e se gosta de mim não me fará mais perguntas. - Esfregou a testa com a mão e fechou com esta os olhos. - Isto me é penoso... E você o compreende.
O coração bateu-me com força.
- Não posso compeender - disse eu - não posso, e diga-me você, pelo amor de Deus, por amor ao dia de hoje, diga-me isto, eu posso ouvir tudo tranqüila.
Ele mudou de posição, olhou-me e tornou e puxar para si o ramo.
- Aliás - disse, depois de uma pausa e com uma voz que procurava em vão aparentar firmeza - embora isto seja tolo e impossível de contar com palavra, embora isto me seja penoso, vou procurar explicá-lo a voês - acrescentou com uma careta, como que provocada por uma dor física.
- Ora! - disse eu.
- Imagine que existiram um dia certo senhor A, vamos fazer de conta - disse ele - um homem velho e vivido, e certa senora B, jovem, feliz, que ainda não vira as pessoas nem a vida. Em conseqïencia de determinadas relações familiares, ele amou-a como uma filha, e não temeu amá-la de outra maneira.
Caou-se, porém não o interrompi.
- Mas ele esqueceu que B. era tão jovem ainda que a vida constituía para ela um brinqueso - prosseguiu de repente, depressa, decidido, sem me olhar - que era fácil passar a amá-la de outra maneira, e que isto a divertiria. Ele enganou-se e de repente sentiu que um outro sentimento, pesado como o arrependimento, esgueirava-se para o seu íntimo, e assustou-se. Teve medo de que se rompessem as suas relações amistosas, e decidiu-se uma viagem, antes que isto acontecesse. - Dizendo-o, tornou, como que por acaso, a esfregar os olhos e cerrou-os.
- Mas por que ele teve medo de amá-la de outra maneira? - disse eu quase imperceptivelmente, contendo a perturbação, e a voz saiu-me regular; mas, provavelmente pareceu-lhe zombeteira. Respondeu num tom que parecia ofendido.
- Você é jovem, eu não sou mais. Você quer brincar, e eu preciso de outra coisa. Brinque, mas que não seja comigo, senão vou acreditar, e isto será mau para mim, e você acabará envergonhando-se de tê-lo feito. Foi A. quem disse isto - acrescentou - bem, tudo isto é tolice, mas você compreende porque vou viajar. E não falemos mais sobre isto. POr favor!
- Não! Não! Falemos! - disse eu, e lágrimas tremeram-me na voz. Ele amava-a ou não?
Não respondeu.
- E se não a amava, por que brincou com ela como se brinca com uma criança? - disse eu.
- Sim, sim, A. foi culpado - respondeu ele, interrompendo-me às pressas - mas tudo acabou, e eles separaram-se... como amigos.
- MAs isto é horrível! Será possível que não exista outro desfecho? - mal consegui proferir, e assustei-me com o que dissera.
- Sim, existe - disse ele, o rosto perturbado e fitando-me bem de frente. - Existem dois desfechos doferentes. MAs, pelo amor de Deus, não me interrompa e compreenda-me tranqüilamente. Alguns dizem - começou ele, levantando-se e tendo um sorriso doentio, penoso - alguns dizem que A. perdeu o juízo , apaixonou-se loucamente por B. e disse-lhe isto... E ela apenas riu. Para ela, isto não passava de brincadeira, e para ele era um assunto vital.
Estremeci e quis interrompê-lo, dizer-lhe que não se atrevesse a falar por mim, mas contendo-me, ele colocou a mão sobre a minha.
- Espere - disse, a voz, trêmula - outros dizem que ela compadeceu-se dele, imaginou, a coitada que não vira o mundo, que ela também podia amá-lo, e concordou em ser sua esposa. E ele, o louco, acreditou que toda a sua vida começaria de novo, mas ela mesma viu que o enganara... e que ele a enganara também... Não falemos mais sobre isto - concluiu ele, provavelmente incapaz de dizer mais, e pôs-se a andar em silêncio na minha frente.
Ele dissera: "Não falemos nisto" - mas eu via que esperava a minha palavra com todas as forças da sua alma. Quis falar, mas não pude, algo paertou-me o peito. Lancei-lhe um olhar, ele estava pálido e tinha o lábio inferior trêmulo. Tive pena dele. Fiz um esforço e de repente, rompendo a força do silêncio, que me acorrentara, falei com uma vz baixa, inferior, a qual, temia eu, ia romper-se a cada momento.
- E o terceiro desfecho - disse eu e detive-me, mas ele permaneceu calado - e o terceiro desfecho consiste em que ele não a amava, mas fê-la sofrer, sofrer, e pensou estar com a razão, viajou para longe e ainda tinha orgulho de algo. Você e não eu está brincando, eu amei-o, amei-o desde o primeiro dia - repeti, e nessa palavra "amei" a minha voz passou involuntariamente de suave, interior, a um grito selvagem, com que eu mesma me assustei.
Ele estava pálido na minha frente, o lábio tremia-lhe cada vez com mais força, e duas lágrimas desceram-lhe sobre as faces.
- Isto é ruim! - quase gritei, sentindo que sufocava de lágrimas más, não choradas. - Por quÊ? - exclamei, e ergui-me a fim de me afastar dele.
Mas ele não me deixou. Tinha a cabeça no meu colo, os seus lábios beijavam ainda as minhas mãos trêmulas, e as suas lágrimas molhavam-nas.
- Meu Deus, se eu soubesse! - disse ele.
- Por quê? Por quê? - continuava eu a repetir sempre, e na alma eu tinha a felicidade, uma felicidade que não voltaria jamais.

(...)
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